segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Lições para as novas concessões


Em uma entrevista ao jornal "O Globo" em 12 de outubro de 2006, às vésperas do segundo turno da eleição presidencial, o então presidente e candidato à reeleição, Lula, afirmou, com relação às tratativas da Petrobras com a Bolívia: "Eu não quero que a Petrobras aja como as empresas multinacionais agiam no começo da década de 50. Eu quero que a Petrobras aja como as empresas estão agindo hoje, no século 21, pagando o preço justo e ganhando o lucro justo".

Fica claro na afirmação de Lula que ele tem certeza de que as empresas multinacionais nos anos 50 "exploravam" o consumidor nacional.

Explorar no sentido de que cobravam pelos serviços de utilidade pública preços além do custo de produção. Evidentemente, Lula nunca estudou esse tema com profundidade. A fala do presidente expressa visão corrente na sociedade brasileira sobre esse tema.

Será que há evidências sobre esses fatos? É possível identificar casos nos quais as empresas multinacionais concessionárias dos serviços de utilidade pública tenham obtido lucros extraordinários, incompatíveis com a normal remuneração do capital e do risco do negócio?

Dois estudos sugerem que o saber comum expresso na fala do presidente Lula não procede.

Trata-se, portanto, provavelmente de visão ideológica de uma sociedade que tem dificuldade de enxergar seus próprios problemas e de identificar a sua responsabilidade nos mesmos problemas. Recorrer a supostos inimigos externos é sempre saída fácil.

O artigo "Market Intervention in a Backward Economy: Railway Subsidy in Brazil, 1854-1913", do acadêmico da Universidade da Califórnia William Summerhill, publicado em 1998 no "Economic History Review", sugere que as ferrovias de capital estrangeiro instaladas no Brasil no período não auferiram retornos excessivos.

Em particular, o retorno das ferrovias de capital privado doméstico -Paulista e Sorocabana- foi superior ao das de capital estrangeiro, e, em ambos os casos, o retorno para a sociedade das ferrovias foi superior ao retorno auferido privadamente pelos acionistas das empresas.

Da mesma forma, a dissertação de mestrado de Marcelo Mollica Jourdan, chamada "A Light, Investimento Estrangeiro no Brasil - Uma Luz sobre o Ciclo Privado-Público-Privado em 80 anos pela Análise da Taxa de Retorno" e defendida na EPGE-FGV/RJ em janeiro de 2006, indica que a taxa interna de retorno da empresa de capital canadense Light foi, ao longo dos 80 anos em que cá esteve, relativamente baixa: menos de 4% ao ano em dólares constantes.

A importância de se estudar a empresa Light deve-se ao papel central que ela desempenhou na oferta doméstica de energia elétrica, transportes urbanos e telefonia nas primeiras quatro décadas do século 20. Ela foi responsável por aproximadamente 80% da oferta desses serviços no período.

Há forte evidência de que, até os anos 30, não houve falta de oferta desses serviços.

O estudo sugere que a rentabilidade da empresa, em seguida ao controle tarifário introduzido pelo Estado Novo em meados dos anos 30, deprimiu a rentabilidade, explicando, portanto, os baixos investimentos a partir dos anos 40. A carência da oferta, consequência dos baixos investimentos, explica a estatização desses setores no pós-guerra, período a que se refere a fala do presidente Lula.

Duas lições se depreendem do caso da Light. Primeira: se não houver um marco regulatório que garanta ao acionista retorno na casa de 8% a 10% ao ano, dificilmente a concessão funcionará. Quando a regulação reduziu os retornos abaixo dessa faixa, os investimentos escassearam.

A segunda lição é que é importante resolver o problema do risco cambial. No caso da Light, o risco cambial era arcado pelo consumidor: quando o câmbio desvaloriza, a tarifa do serviço era elevada.

Ao retirar esse risco do investidor estrangeiro reduz-se muito o retorno requerido (por esse mesmo investidor) para implantar e gerenciar o serviço.
O problema é que deixar o risco cambial para o consumidor é politicamente muito difícil: períodos de grandes desvalorizações cambiais, como foi o caso em seguida à crise de 29, são períodos de perda salarial. É muito difícil justificar elevações de tarifas quando os salários reais estão em queda.

Dado que somos uma sociedade de baixíssimos níveis de poupança, parte dos investimentos em serviços de utilidade pública terá que ser financiada externamente.

 Se não houver um equacionamento do problema do risco cambial, não haverá solução duradoura para a oferta desses serviços.


30/09/2012 - Folha de S. Paulo

*Samuel de Abreu Pessôa
 
*Samuel de Abreu Pessôa é doutor em economia e pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da FGV.

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